A saga de um estagiário de jornalismo em Natal

O despertador do celular tocou às 6h30min da manhã. Abri os olhos, olhei o celular e constatei, triste e sonolento, que não havia nenhum erro, que ele não tocara mais cedo do que deveria e que realmente eu teria que encerrar por ali o meu sono. Levantei, cambaleante, e segui até o banho para ver se o contato com a água me ajudaria a despertar.

Banho tomado era hora de escolher a minha roupa. Ainda com os olhos querendo fechar, escolhi uma calça jeans, um par tênis e uma camisa polo listrada. Era o conjunto mais formal que tinha para ir ao meu primeiro dia de trabalho. Tomei um copo de leite com Nescau, escovei os dentes, passei desodorante, um pouco de creme no cabelo e estava pronto. Me olhei no espelho, fiz cara de quem passava confiabilidade e pensei: "espero não precisar ir para um lugar muito formal". Mesmo com todo aquele conjunto, o cabelo grande, a barba mal feita, os óculos de aro preto e a cara de sono não passavam o mínimo de formalidade.

Fui dirigindo num misto de raiva e alegria. Raiva porque acho um absurdo os seres humanos terem que acordar antes das 8 horas da manhã. Deveria haver uma lei que proibisse tal crime. A pior sensação do mundo é a do sono interrompido. Prefiro ir dormir mais tarde, do que acordar muito cedo. A alegria vinha porque eu tinha conseguido um estágio que é o sonho de boa parte dos alunos de jornalismo da UFRN. Eu não estava indo para uma assessoria de imprensa, eu me dirigia à redação de um jornal. Tá, beleza, não era um grande jornal. Mas era uma redação. Ia sentir na pele as pressões do dead line, ia sair na rua para depois escrever sobre os problemas do povo. Era a minha chance de fazer um jornalismo diferente, do qual eu sempre sonhei. Era o dia em que eu poderia mostrar que tinha talento para o jornalismo.

Cheguei pontualmente às 7h30m, conforme a editora executiva do jornal tinha me pedido no dia anterior. Estranhei, porque fora o motorista e uma das recepcionistas, ainda não havia ninguém. Isso me frustrou um pouco. Fui para a redação, ainda vazia, sentei em frente a um computador e comecei a ler um dos jornais que estavam por lá. Logo foi chegando os outros estagiários e a editora. Intrigante, o jornal era feito apenas por estagiários inexperientes, como eu. Só os editores e a editoria de política e de polícia que haviam profissionais formados exercendo a atividade. Os repórteres eram só alunos. Um dos colegas brincou, "Bem vindo ao Campus dois, Fábio". Minha tarefa no jornal era cobrir uma pauta de cidades e uma pauta do caderno de cultura. Cada um dos cadernos tinha uma editora diferente. A de cidades era uma mulher loira, que deveria ter mais ou menos 1,65m sem salto alto, rosto arredondado e bonito, uma pequena tatuagem nas costas, cabelo pintado de loiro. Ela gostava de conversar sobre as pautas e sobre o texto. Ela nos pautava muitas com coisas que via na rua ou por meio de informações que recebia de amigos. Nas sextas, ela escolhia um estagiário para cobrir uma pauta relacionada a turismo.

A editora de cultura pode ser descrita como o inverso. Tanto no aspecto físico, quanto no jeito. Tinha cerca de 1,70m sem salto, era morena, cabelos que passavam um pouco as orelhas, o rosto com um formato mais quadrado. Seu jeito de andar passa credibilidade e auto-confiança, ao mesmo tempo que sua forma de agir denotava uma personalidade explosiva e impositora. Era o "é assim e pronto" da redação. Não parecia uma pessoa muito afeiçoada à cultura, apesar de estar no mailling de muitos produtores culturais da cidade. Além da editoria de cultura, era a editora assistente e ainda respondia pelo caderno especial de fim de semana. Logo, não tinha tanto tempo para pensar na pauta e na matéria de cultura. E, em meio a isso tudo, sua visão cultural diferia completamente da minha, o que me deixou várias vezes frustrado.

Cansei do número de vezes que pensei exatamente no texto que iria dizer a ela sobre a editoria de cultura. Falar que cultura não é evento. Falar que poderíamos pensar em matérias de forma diferente. Cansei do número de vezes em que eu mesmo me pautava, fazia algo bem diferente do que ela pedia e via minha matéria perder a validade dentro do banco de textos que a redação possuía, cansei de sugerir a ela uma visão diferente das pautas e não via nela nem um fiozinho de empolgação. Tudo isso em troca da divulgação de companhias de comédia nada engraçadas, de shows que não fui, de lançamentos de livros que eu mal conhecia. Como Vicente Serejo muito bem frisou uma vez, em Natal não existe jornalismo cultural. Existe jornalismo de eventos. Os jornais são grandes assessorias de imprensa dos eventos culturais. Não opinam, não discutem, sequer lutam pela fomentação da cultura no Estado. Tudo é bom e pronto. É raro ver matérias que realmente se dedicam a discutir cultura, que fogem da fórmula mágica de elogiar tudo que é produzido. É difícil ver matérias que procuram olhar a cultura de Natal de uma forma diferente. Não discutem, só divulgam as mesmas pessoas, as mesmas comédias chatas que são exibidas no Teatro Alberto Maranhão, os mesmos eventos sempre. É frustrante demais.

Isso tudo sem falar no esquartejamento do texto. Pô, se tem algo que não gostou, me fala que eu mudo, não esquarteja o que escrevi. E por que eu não posso tentar dar um pouco mais de sensibilidade ao texto, sem perder a objetividade e a concisão jornalística? É crime uma matéria vir com um toque mais sensível? Se é crime ou não, eu não sei. Crime deveria ser o esquartejamento do texto, a mudança dele sem a consulta do autor. Dói ler algo que foi modificado sem que você soubesse. Dói ainda mais saber que aquela modificação foi em nome da "objetividade jornalística" e ver que ela tirou toda a cadência que o texto assumia. Entendo que deve haver objetividade, mas o jornalista precisa ser sensível. Principalmente quando falamos de matérias que envolvem o lado cultural da cidade. Por que tirar a cereja do texto, se é ela que chamaria mais o leitor?

E o pior disso tudo é que eu era apenas um estagiário sortudo. Eu estava num lugar onde a maioria dos meus colegas queria ocupar e se eu desse um piu de reclamação sobre o caderno, seria taxado de inexperiente e chato. Ficaria queimado no jornalismo potiguar e talvez não conseguiria mais encontrar emprego na área. E isso é cruel demais. É cruel porque o estagiário que deveria trabalhar apenas quatro horas, acompanhando um profissional e cobrindo no máximo uma pauta por dia não faz isso. Trabalha como um profissional por seis horas cobrindo duas pautas, muitas vezes sendo cobrado como um profissional, ganhando menos que um profissional e sem poder reclamar, porque se sair, não faltará substituto para ocupar aquela vaga e você perdeu uma grande chance de ficar no mercado. Isso sem falar que ao sair da redação, o estagiário tem aula. E o mercado muitas vezes impõe a ele uma decisão mesquinha: o trabalho ou o estudo? E o drama aumenta ao perceber que essa realidade é comum em todos os jornais de Natal e que isso contribui negativamente para a formação do profissional e para a qualidade do jornalismo potiguar.

A experiência acabou sendo mais frustrante do que positiva. Tá certo que o contato com fontes, que escrever diariamente sob a pressão do dead line, que estar dentro de uma redação teve certo valor pedagógico para o meu crescimento como jornalista. Mas isso me entristeceu demais. Me fez querer mudar de profissão. Ao final daquele ensolarado primeiro dia de trabalho, saí com a esperança de que aos poucos tentaria mudar aquela realidade. Ao final do primeiro mês, saí conformado com aquilo tudo e pensando em talvez em seguir outra carreira. Publicitário poderia ser uma saída. O que eu sei é que não agüentaria por muito tempo viver naquela realidade. Dói constatar isso, mas se pelo menos as coisas fossem diferentes... É nessas horas que eu pergunto, por que diabos eu fui querer ser jornalista?

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