O Canto

Eram belas aquelas penas brancas. De uma forma bem confusa podia perceber que elas refletiam a luz do sol e iluminavam ainda mais aquele lugar sujo e feio que morávamos. Ela andava num molejo, num gingado que chamava a minha atenção e me fazia desejá-la de uma forma que talvez ela não imaginasse o quanto. Seu olhar, por vezes, cruzava o meu, mas era carregado de um desdém e de uma superioridade que baixava a minha crista e me fazia sentir um moleque recém saído do ovo.

Não entendia porque, de certa forma, ela não prestava atenção em mim. Talvez não fosse belo o suficiente para conquistar o seu coração, ou ainda fosse pequeno demais para conseguir o interesse dela. O certo era que eu precisava aprender a cantar antes de tentar qualquer coisa com aquela beleza branca que passava tardes naquele caminhar rebolado à minha frente. Cantar porque eu sabia que ela gostava de cantar e gostava ainda mais de parar e observar os machos cantando belas canções que falavam de amor, de perseguições e de milho. E o meu cocoricó ainda era fraquinho e nada belo.

Entreguei-me, então, as aulas de canto, com os mais velhos, para ver se algo bonito poderia sair do meu bico para conquistá-la. Ensaiei diversas letras, comuns, velhas, novas e até as mais modernas, mas nada me saía, nada me fazia atingir a beleza necessária para que conseguisse conquistar aquele pequeno e difícil coração, ou para que, até mesmo, a atenção dela fosse desviada para mim. As noites passavam frias e silenciosas, sem que eu conseguisse sequer captar a melodia e a poesia necessárias para que o galinheiro, e principalmente ela, pudesse notar toda a grandeza da alma que habitava o meu pequeno ser. E todo o amor que me invadia.

A crista me crescia, ao mesmo tempo que as penas dela ficavam cada vez mais brancas. E as suas amigas, sumiam uma a uma para nunca mais voltar. Notava naqueles pequenos olhos fortes a tristeza que o destino lhe impunha com tamanhas perdas. A irmã dela já havia ido e tinha deixado dois pintinhos órfãos que ela trataria de cuidar. Os pintinhos eram filhos do galo maior, um galo imponente, forte e de bela crista que cantava canções que falavam do verde da grama e do prazer que a terra molhada lhe dava. O galo maior era poeta e cobiçado por todas as galinhas, menos por ela na sua indiferença magistral e na sua bela forma de andar com as patinhas levantadas.

E o tempo ia passando e eu crescendo e morrendo por dentro por conta de tamanha indiferença. Até que um dia ela sumiu, não estava mais no galinheiro, não estava em lugar nenhum. Temi e senti meu coração sangrar por dentro. O dia se passou sem o sol se refletir naquelas belas penas, sem que eu pudesse ver, ao menos uma vez, aquele seu andar belo que tanto me chamava a atenção. A noite caiu e a minha tristeza foi habitando todo o meu pequeno corpo, até a minha crista, imponente, parecia fraquinha por conta do meu coração apertado. Não havia o menor sinal dela. Não saberia viver sem observar a luminosidade daquelas penas, a beleza daquele andar e nem muito menos a sutileza do olhar daquela galinha. Chorava por dentro, enquanto entoava uma canção que me vinha na cabeça, assim, de repente, mas que fazia meu cocoricó forte, tão forte que as outras galinhas passaram a me olhar de uma outra forma. Os galos-poetas que estavam próximos de mim olhavam admirados e ouviam emocionados aquela música triste que eu entoava em amor a ela que eu nunca mais veria, que eu nunca mais teria. O galinheiro encheu-se da tristeza daquela poesia de uma forma tão forte que mundo parecia um mar de lágrimas galináceas diante do destino terrível que nos espera. O canto foi tão forte que acabou com as minhas energias e, ao amanhecer, dormi com lágrimas nos olhos e a poesia no bico.

Acordei com um bicho estranho, de duas patas e duas mãos, segurando as minhas patas, pronunciando barulho numa língua estranha. Temi pela minha vida, mas senti que o fim talvez me aproximasse dela. Essa certeza acalentou o meu coração e me fez pedir para que, de certa forma, eu fosse para perto dela para que eu pudesse lhe mostrar a canção de amor que compus em nome dela. O tempo corria devagar quando senti uma mão gelada no meu pescoço, senti a força, senti o ar deixando de invadir o meu corpo, senti frio, apaguei. Quando vi, eu era uma canja, num almoço imenso. Mas pelo menos estava do lado da minha amada e dos seus belos olhos, agora sem vida.

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